A questão racial e a sociedade brasileira

Autor: Daniel Bento Teixeira Data da postagem: 11:52 26/08/2022 Visualizacões: 4031
Curta a nóticia:
Curta o CEERT:
Imagem de uma estudante negra. Título "A questão racial e a sociedade brasileira".

 Artigo produzido com base na palestra realizada durante encontro com jovens do programa Prosseguir*. De maneira simples e didática, Daniel Bento Teixeira, diretor executivo do CEERT, explica aos estudantes como o Brasil se constituiu em uma sociedade racista e com enormes desigualdades. 

As desigualdades sociais no Brasil derivam do racismo, porque a interação entre portugueses, indígenas e negros se deu desde o início de maneira hierarquizada, com base neste sistema de opressão. O trabalho escravo é destinado a uma expropriação do trabalho como parte dessa engrenagem.

Esse sistema de opressão que hierarquiza vidas humanas de acordo com pertencimento racial é o que se chama de racismo. Isso acontece desde a invasão portuguesa, criando um sistema de desigualdades que se expande no Brasil.

Temos no racismo a matriz das desigualdades sociais e isso é fundamental para entender o Brasil hoje. Os ciclos econômicos de exploração começam com o Pau Brasil. Com isso, o termo “brasileiro” se tornou pejorativo em Portugal, pois eles mandavam criminosos para explorar o Pau Brasil, ou seja, pessoas que eram de segunda classe para a Coroa portuguesa.

A mudança chega somente ao longo do século 18. É durante esse período que o significado pejorativo vai sendo abandonado e se firma a identidade nacional ainda focada na ideia de exploração econômica.

O plano nunca foi formar um país e interagir de forma positiva com quem já estava aqui e com quem vinha sequestrado dos países africanos. A ideia era criar uma hierarquia e desenvolver um projeto que pudesse colocar os que exploravam os ciclos econômicos, os portugueses e europeus, acima dos demais, que vivenciavam a expropriação do seu trabalho e genocídio.

Ao longo do século 18, há o aprofundamento das desigualdades pelo sistema que cada vez mais colocava a população negra em patamar inferiorizado, assim como a população indígena, vitimada pelo genocídio.

Nos séculos 18 e 19, havia uma pressão pelo fim do escravismo, principalmente liderado pela Inglaterra, justamente pelo interesse que esse país tinha de afirmar o capitalismo e sua revolução industrial. O Brasil era visto como um possível mercado consumidor e a pressão era cada vez mais forte.

Surgem, com isso, diversas leis como se fosse um avanço na abolição, mas eram de fachada. Devido à aplicação bem precária que tiveram, é criada a expressão “para inglês ver”. O que significa quando algo é feito para “inglês ver”? A expressão vem das leis abolicionistas, aprovadas “para inglês ver”, porque a Inglaterra pressionava. 

Tudo isso gera um movimento de branqueamento mais forte no país, porque se percebia a chegada da abolição formal. Mário Theodoro, economista e professor importante ligado ao movimento negro, aponta que os escravizados negros no Brasil somavam mais de 50% da população brasileira no início do século XIX. Mas em 1874 esse percentual é reduzido para 16% com um grande movimento do imigrantismo europeu, sob a ideia de “qualificar” o trabalho no Brasil e construir um país livre.

O trabalhador negro, que até aquele momento tinha sido qualificado para tudo em várias atividades complexas, como ferraria e comércio, a partir de então passou a ser visto como não qualificado para o trabalho assalariado que estava por vir.

Encontramos a perversidade dessa nova forma de expropriar não somente o trabalho, mas a própria chance do trabalho livre, assalariado e de integração a um projeto econômico de país. Alguém vai dizer “que falha no projeto de Brasil e desenvolvimento!”. Na verdade, não houve falha, o projeto era esse.

São editadas várias leis que dificultam a entrada de trabalhadores negros no Brasil, a partir da abolição formal. A proibição apenas era superada com autorização expressa do Congresso Nacional e obviamente isso não era realizado. A “freada” na entrada de trabalhadores negros e reforço enorme de imigrantismo europeu ocorreu para branquear o Brasil.

Tanto que em 1911 houve um congresso internacional sobre raças, que aconteceu em Londres. O representante do Brasil, João Batista de Lacerda, que era diretor do Museu Nacional, diz publicamente que os europeus não se preocupassem porque em 100 anos não haveria mais negros no Brasil, porque a “mistura” não seria apta a procriar. A “mistura” traz a ideia de “mula”, de onde vem a expressão “mulato”.

O Brasil realizou um movimento eugenista e, a partir de 14 de maio de 1888, tudo permaneceu hierarquizado, inclusive do ponto de vista do trabalho. Consolidou-se o lugar do trabalho informal, excluído e marginalizado para a população negra. 

Ocorreram muitas adoções “à brasileira” de crianças negras, que eram adotadas a título da sua criação, mas, na verdade, eram destinadas a trabalhos domésticos ou atividades de auxílio às famílias brancas em termos econômicos. Era uma adoção servil para o trabalho que assim foi se desenvolvendo no século 20.

Com o passar do tempo, vão surgindo leis como Afonso Arinos, de 1951, que define o racismo como contravenção penal e não como crime, de pouquíssima efetividade e concretude no combate ao racismo.

Ao longo do século 20, mesmo durante a ditadura militar no Brasil, há a aprovação de tratados, como o Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, que são as “leis para inglês ver”. A própria ditadura militar aprovou várias dessas leis dizendo que não havia problema nenhum em aprovar, porque não havia racismo no Brasil.

São leis que tiveram pouca ou nenhuma efetividade, fazendo com que a gente chegasse no século 21 sem medidas efetivas de integração econômica e exercício de direitos para a população negra.

Começa então esse novo século, tendo como marco a Conferência de Durban, como ficou conhecida a Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU). Na ocasião, o Brasil teve a maior delegação da sociedade civil do mundo. Tivemos também uma relatora negra, importante ativista e intelectual do movimento negro, Edna Roland.

Depois de muita pressão do movimento negro, que em 1995 organizou uma marcha nos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares em Brasília, surgiram várias diretrizes. Uma delas visava fortalecer a implementação de ações afirmativas.

Foi quando passamos a observar instituições no Brasil adotando ações afirmativas, como universidades, a exemplo da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mediante leis estaduais em alguns casos e em outros pelo princípio constitucional da autonomia universitária que garante às universidades pensarem seus próprios programas.

Cada vez mais, observamos universidades aderindo aos programas. É um cenário que está constituído hoje num momento de muito ataque às ações afirmativas, depois de 10 anos da implementação da lei federal que deu corpo e uniformidade aos programas. A lei, de 2012, traz no artigo 7o a possibilidade de revisão em dez anos.                                                                                                 

O movimento negro tem lutado muito para que haja efetividade da lei, caminhando para uma proporcionalidade com a presença de estudantes negros e negras nas universidades, além do exercício do direito humano ao trabalho digno.

É estratégica a posição do movimento negro para que estejamos à frente do projeto antirracista de desenvolvimento socioeconômico do Brasil, centralizado no trabalho, já que foi por seus frutos que fomos escravizados desde o início no país. Precisamos lutar por uma justiça socioeconômica antirracista como única forma de retomarmos um projeto de sociedade verdadeiramente pautada no estado democrático de direito.

 

Leia também:

Quais os desafios de ser jovem negro(a) no Brasil?

 

*O Programa Prosseguir é uma iniciativa do CEERT que visa a permanência de jovens negros e negras periféricos e em vulnerabilidade socioeconômica na universidade, bem como o seu pleno desenvolvimento, incluindo capacidades socioemocionais e de liderança.

 

 

 
Curta a nóticia:
Curta o CEERT: