Esta coluna foi escrita para a campanha #ciênciasnaseleições, que celebra o Mês da Ciência. Em julho, colunistas cedem seus espaços para refletir sobre o papel da ciência na reconstrução do Brasil. Quem escreve é Adriana Alves, professora do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo.
Estudantes negros promoveram uma (r)evolução do conhecimento científico
A implementação da reserva de vagas para alunos oriundos de instituições públicas, respeitada a composição étnico-racial de cada estado da Federação, representa uma das maiores conquistas do movimento negro brasileiro.
Os ganhos da adoção da medida são inegáveis. Não apenas as universidades se tingiram de povo como há hoje uma elite intelectual negra ocupando espaços outrora reservados quase exclusivamente aos brancos. Bancadas de telejornais, programas de entrevistas, telenovelas, propagandas, colunas de jornais e revistas são hoje povoadas de figuras e ideias negras que inspiram novas gerações e suscitam discussões em que pessoas negras são o centro e não o objeto dos debates.
Os temores de queda na qualidade das instituições com a adoção das cotas se mostraram infundados e deixaram ainda mais evidente o preconceito da discussão que antecedeu a medida. Nenhuma universidade teve sua posição nos rankings nacionais e internacionais alterada por efeito da reserva de vagas. Muito pelo contrário, pesquisas recentes mostram que cotistas têm desempenho acadêmico semelhante ou levemente superior a seus pares não cotistas, sobretudo em instituições que adotaram, conjuntamente à reserva de vagas, políticas robustas de incentivo à permanência e à efetiva inclusão desses/as estudantes na vida universitária.
Isso tudo já seria suficiente para atestar o sucesso das cotas. Entretanto, há um argumento central que tais fatos falham em reconhecer: a (r)evolução do conhecimento científico e das práticas educacionais promovida por esses/as estudantes.
Nos últimos anos, escutei inúmeros relatos a respeito de residentes negros de dermatologia que contestaram professores e seus guias visuais de doenças dermatológicas ilustrados exclusivamente por pessoas de pele clara. Vi estudantes de direito organizarem processos civis para denunciar e forçar a apuração de fraudes nas cotas em instituições que se furtaram a acompanhar a implementação da medida conforme preconiza a lei.
Assisti ao surgimento de coletivos voltados ao suporte múlti e interdisciplinar em questões relacionadas a direito, tecnologia e racismo (o Aqualtune Lab, por exemplo, que promove cursos de formação antirracista em direito e tecnologia). Ouvi jovens obstetrizes negras apontar a discordância de procedimentos adotados para gestantes negras e brancas durante o pré-natal e o trabalho de parto.
As discussões sobre referenciais bibliográficos majoritariamente eurocêntricos obrigaram professores a encarar seu próprio viés teórico. Os mais abertos se beneficiaram da inclusão em sua bibliografia de autores africanos, latino-americanos e de povos tradicionais, ampliando o alcance e a qualidade das discussões.
O argumento central anticotas que alardeava a queda da qualidade da academia com a entrada desses estudantes deve ser revisto. São as universidades que estão qualificando suas práticas e ampliando seu conhecimento para dar conta do aumento de qualidade trazido pela diversidade social e racial, algo que já está presente nas melhores universidades do mundo.
Prova desse incentivo à reestruturação do ensino superior é a recente criação da pró-reitoria de Inclusão e Pertencimento da Universidade de São Paulo. A exemplo de outras instituições, a Prip tem como uma de suas missões a promoção de um ambiente sadio e acolhedor a toda a população uspiana, com interesse especial nas populações ainda sub-representadas na pós-graduação e, sobretudo, na docência universitária.
Fonte: Folha de S. Paulo
Categoria: Participação popular