Texto tem de reconhecer raça e gênero como estruturantes das desigualdades educacionais
Uma ação importante que movimentos sociais e organizações da sociedade civil deverão protagonizar nos próximos dias é o apoio à instituição do SNE (Sistema Nacional de Educação).
Prestes a ser votado na Câmara, depois de ter sido aprovado no Senado, o SNE pode fazer valer o que foi estabelecido no artigo 3? da Constituição de 1988, ou seja, que, dentre as finalidades fundamentais do Estado democrático de Direito, encontra-se a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, possibilitando a redução das desigualdades, das disparidades regionais e das discriminações que aviltam a dignidade da pessoa humana.
Temos a oportunidade única de frear o processo de produção das desigualdades na educação, que, segundo inúmeros estudos, diariamente presentes nas manchetes da grande mídia brasileira, impactam as pessoas e as regiões mais pobres do país, destacadamente pessoas negras, povos indígenas, quilombolas e moradores de bairros periféricos.
Candidatos entram em local para o primeira dia de prova do Enem, em São Paulo - Eduardo Anizelli - 21.nov.2021/Folhapress
Assim é que, após mais de três décadas desde que foi prevista a colaboração entre União, estados e municípios na área da educação, é possível enfim aprovar uma lei complementar que regulamente o diálogo, os consensos e a cooperação federativa, favorecendo a transparência, a participação e o controle social na instituição do SNE.
Como sinaliza a professora e pesquisadora Zara Figueiredo, "a regulamentação do art. 23 da Constituição, com a criação do SNE, é um avanço no campo da educação que precisa, no entanto, romper com três grandes silêncios no substitutivo votado no Senado: as desigualdades socioeconômicas e raciais na educação; o equívoco conceitual entre territórios e desigualdades e a frágil ancoragem democrática do documento, que não prevê a participação da comunidade educacional e movimentos sociais nas arenas de pactuação, no âmbito do SNE.
Aqui, vale ressaltar que a redução das desigualdades educacionais é eixo central tanto do SNE quanto do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação).
Entretanto, a aprovação do sistema precisa já prever quais os instrumentos serão usados para que o ganho relativo à inclusão da desigualdade no SNE não se perca na imprecisão política e conceitual.
A inserção das questões referentes aos territórios quilombolas no texto do SNE é acertada e exige a ação qualificada do sistema, mas não elimina a urgência de elaborar uma política focada na redução de desigualdades raciais.
É nesse sentido que a figura da "desigualdade genérica" não nos interessa, pois precisamos que raça e gênero sejam reconhecidas explicitamente no texto como estruturantes das desigualdades educacionais brasileiras, evidenciadas por inúmeros estudos.
Lutar contra "todas as formas de discriminação e promover a grande diversidade da sociedade brasileira" reflete princípios basilares da democracia, mas não pode se constituir em argumentos utilizados como forma de esvaziar o peso da discriminação racial, étnica e de gênero que estrutura as desigualdades no país.
E a participação das organizações da sociedade civil, reconhecida explicitamente no documento, deve ser ampliada para assegurar a qualidade na concepção, no monitoramento e no controle social do SNE.
Assim, cumpre neste momento nomear essas desigualdades para que um sistema educacional da magnitude do SNE não nasça morto, incapaz de alterar o vergonhoso lugar que o Brasil ocupa no ranking educacional de países.
Podemos sim criar uma escola acolhedora, atraente, com estruturas e equipamentos adequados, com material pedagógico que respeite a multiplicidade cultural que marca a sociedade brasileira, com profissionais da educação valorizados e bem preparados. Podemos democratizar as oportunidades educacionais. Mas teremos, antes de mais nada, que nomear as desigualdades que vamos enfrentar.
Fonte: Folha de S. Paulo
Categoria: Educação